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segunda-feira, 29 de julho de 2013

O ROMANCE DO V.R.

O ROMANCE DO V.R.
   
                                                             
                          Autor: José Alves de Figueiredo
                    Postado por: Heitor Feitosa Macêdo
            
Luizinha e sua neta (Lolita), em Portugal.
        Leio sempre, com agrado, nos jornais de Fortaleza, as croniquetas assinadas por V.R. e concluo que o autor aprendeu regularmente a arte culinária, dosando bem o sal desse alimento espiritual que fornece aos leitores do sertão.
         Saboreava um dia desses o trabalho que V.R. traçou sobre os ardores cinegéticos de gente de destaque da Capital. Quando me assaltou fortíssima saudade de minha velha camaradagem em nossa juventude, há quase meio século, com o signatário da espirituosa cônica.
         A gente, quando já se vai aproximando do túmulo, torna-se mito sentimental, recordando todas essas futilidades da vida passada com um desejo impotente de voltar...
         Como vai longe aquele belo tempo!
         Tínhamos ambos 16 ou 18 anos, quando em torno de uma fogueira de São João nos fizemos compadres para se tornarem mais estreitos os laços de nossa camaradagem.
        
Luizinha, aos 72 anos, e sua família, em Guimarães/Portugal.
         V.R. arranjou, nesse tempo, namoro com uma menina de nome Luizinha, filha do professor público Manuel da Penha de Carvalho Brito e vivia, nos arroubos da primeira fase de seu sonho, a dar na concha da balança do meu coração todo o peso do grande amor que aumentava dia a dia.
         Luizinha não era tipo de beleza, mas, vista através das lentes de aumento que Eros sabe pôr aos olhos dos apaixonados, tinha retoques mágicos para o namorado que, na veemência do seu enlevo, vivia a exalçá-los em linguagem açucarada.
         Moreninha e pequena como um lírio, era bem a noiva ideal do meu compadre que sempre foi pouquinho, fisicamente.
        
Luiza da Penha Pereira Maia.
Nesse tempo, já o coronel José Belém de Figueiredo tinha deixado de ser o modesto comerciante que fora, para transformar-se no Manda-Chuva de Crato.
         Aconteceu que um jornal de Fortaleza publicou artigo enviado de Crato, causticando os processos violentos empregados pelo detentor do poder que oprimia, sem piedade, a bela princesa do Sul cearense.
         A autoria dessa publicação foi atribuída ao professor Penha, e o coronel Belém, sem um indício que justificasse, de qualquer modo, esse ato de prepotência aldeã, concebeu, de pronto, plano de vingança original e cruel: – Chamou seu lugar-tenente, o famigerado Jesuíno Antonio Maria, comandante de um
Lolita, em 1954.
a guarda municipal composta de bandidos da pior espécie, e mandou que o mesmo se improvisasse farmacêutico e transformasse o jornal em pílulas, obrigando o velho educador cratense a degluti-las.
         A ordem, arbitrária e cruel, foi cumprida na parte leste da Praça São Vicente, hoje Avenida Cel. Manuel Siqueira Campos, sob as vistas da população estarrecida.
         Anos depois ficou apurado que o autor do artigo em questão fora o ouvires José Flamínio que, na ocasião, vendo as barbas do vizinho arderem, pôs as suas de molho, dando um pulinho para Belém do Pará, de onde não mais voltou.
         Julgando-se desmoralizado, o professor Penha resolveu emigrar com toda a família para Manaus, ficando por lá até morrer.
         Foi violentíssima a dor de V.R. ao separar-se de sua diva. Houve repetidas juras de fidelidade e, depois do competente bota-fora, sob torrente de lágrimas, o Romeu, saudoso de sua Julieta, voltou-se para o meu lado e descreveu-me toda a imensa dor que lhe avassalava a alma, todo o prodígio de sua fortaleza de espírito para assistir sem perder o juízo, o fragoroso ruir dos seus sonhos dourados.
        
Luizinha e família, na Vila Aurora/Portugal, em agosto de 1918.
       
      Inspirado, patético, teve frases como estas: “Minha cabeça é um vulcão, arde em lavas de desespero! Meus miolos fervem como se estivessem dentro de uma caldeira infernal! Resta-me apenas a esperança de alcançar recursos, para seguir Luizinha e me casar com ela! Do contrário, meterei bala no crânio e acabarei com esse trapo de vida amargurada”.
         Eu, amigo sincero, receoso de que meu apalermado camarada cometesse mesmo um desatino, velei por ele, roguei, implorei mesmo que afastasse do seu pensamento aquelas ideias sinistras que me punham em sobressalto contínuo.
         Cupido, sempre canalha, solícito e hábil em pregar logros à humanidade. Prepara as coisas de uma forma, mas só permite que elas se realizem de acordo com as secretas intenções...
         Luizinha, em Manaus, esperou alguns anos, certa de que aquelas ardentes juras, seladas com tantas lágrimas, tinham caído no rol das letras prescritas, resolveu ligar seu destino ao de um português rico e foi viver em Lisboa, numa bela chácara que seu marido ali possuía, a saborear belas peras e gostosas maçãs.[1]
         Enquanto viveu nesta cidade seu cunhado José de Holanda Praxedes, eu tive notícias de Luizinha pelas cartas que ela lhe dirigia. Pela leitura de suas missivas, concluí que minha patrícia tinha evoluído muito, intelectualmente, nas terras de além-mar.
         Nos jornais que remetia de lá aio citado cunhado, enchia as margens com longos comentários elucidando assunto de que os mesmos se ocupavam.
         Lembro-me de belo comentário, em estilo cintilante, escrito por ela nas margens de número da “A Mala da Europa”, sobre o modo de governo do país amigo, encarando o problema do meretrício, ainda no tempo de D. Carlos, e do qual muito gostei.
         Morto José Holanda, eu não tive mais notícias de Luizinha e não sei se viverá.
         Se ainda vive, deve estar bem velhinha e muito reduzida na sua figurinha de Tanagra.
         Quanto ao meu compadre V.R., posso informar que deixou de andar com essas fantasias de Vesúvio na cabeça, para ter belas ideias e traçar lindas crônicas. Deixou também de ter os miolos a ferver nas caldeiras de Pedro Botelho. Não abriu o crânio com uma bala e nem foi para o Norte. Achou mais prático viver muitos anos e ficar em Fortaleza, evitando as endemias do inferno verde. Casou com senhora de respeitável família da nossa Capital, que há anos o deixou viúvo. Tem filhos e perfeitamente educados.[2]  
         Aliás, já é tempo. Subiu como eu, cinco etapas ascendentes na montanha da vida, e, preguiçosamente, desceu uma para o lado oposto, igualmente como seu velho companheiro que comete indiscrições dessa natureza.
Crato, 1932

(in Figueiredo, José Alves de, Ana Mulata: Contos e Crônicas, Crato - CE, Instituto Cultural do Cariri, p. 25 a 29).  


                
               




[1] Luizinha faleceu em 1956, em Guimarães, Portugal. Escrevia para a parenta e amiga, D. Santa Moreira, sempre saudosa da terra natal e com a velhice amargurada pelos desgostos que lhe dava o marido, desgostos esses compensados pelo carinho e amizade dos filhos (nota de J. de Figueiredo Filho).
[2] Os filhos de Vicente Roque são Atualmente pessoas de real projeção nas suas profissões e nos meios onde vivem (nota de J. de Figueiredo Filho).

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