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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Ferro Caldo da Família Feitosa

                             Ferro Caldo da Família Feitosa
                                                                                                
                                                                               Heitor Feitosa Macêdo
         
          
A estrela utilizada pelos Feitosa dos Inhamuns/CE.
A civilização do couro, assim chamada por Capistrano de Abreu a empresa ligada ao criatório, ou ciclo econômico do gado, predominou na paisagem nordestina, promovendo a sua colonização. Deixando por legado antigos costumes, como a técnica de identificação da propriedade sobre os animais. Sendo oportuno registrar alguns apontamentos desse aspecto em relação à família Feitosa.
         No início do século XVIII, o povoamento do interior da Capitania do Ceará se intensifica, contribuindo para isso o fato de a lei de 1701 proibir a criação de gados nas proximidades do litoral e dos canaviais[1], pois o criatório devastava as plantações, sobremodo, as de cana-de-açúcar. Assim, a atividade açucareira empurrou para os sertões a cultura das alimárias.   
         Dessa maneira, em meados de 1707, chega ao Ceará a família Feitosa, onde requereu terras, através das doações sesmariais. Inicialmente, os irmãos emigrados de Penedo/AL, Lourenço e Francisco Alves Feitosa, peticionaram terras nas proximidades do Icó/CE, à época, o centro mais desenvolvido do interior da Capitania.
         Com o passar dos anos, foram adquirindo mais campos para acomodarem seus gados, até chegar ao cúmulo de somarem 35 sesmarias, que mediam em média, cada sesmaria, três léguas de comprimento por uma de largura (meia em cada lado de um rio). O desejo pelo latifúndio guiou esses irmãos para uma guerra violenta.
         Nos seus pedidos de sesmarias sempre alegavam não possuir terras suficientes para acomodarem seus gados “vacuns” e “cavalares”, ou seja, bovinos e equinos, principal fonte de renda naqueles tempos e naqueles meios. Não é à toa que gado vem da palavra “gaanar”, ou melhor, ganhar.
         A intenção desses indivíduos, e de muitos outros, era senhoreassem de latifúndios onde pudessem desenvolver a pecuária extensiva. Registre-se que pecuária deriva de “pecus” (gado, rebanho),[2] daí surgindo “pecúlio” (bens, propriedade, dinheiro).
         Foi com esse mote que os Feitosa alcançaram as pastagens do Sertão dos Inhamuns, onde deitaram seus imensos rebanhos. Havendo nessas paragens, inda hoje, muitos descendentes dos primeiros colonizadores, onde perseveram com seus criatórios, praticando técnicas dos séculos passados.
         Uma dessas técnicas consiste na individualização da posse sobre os animais, isto é, o dono identifica os semoventes (bois, cavalos, cabras, ovelhas etc.) através de um sinal característico, uma marca, que é posta, geralmente, no caso dos bovinos e equinos, sobre a epiderme.
         Frise-se que os ovinos e caprinos (chamados pelo sertanejo de “miunças”), por possuírem uma pele mais delgada, não suportam a marcação a fogo, restando aos donos assinalarem suas orelhas, decepando-lhes geometricamente pequenos pedaços de seu rebordo.
         Para gravar a fogo os sinais dos criadores, lança-se mão de um pedaço de ferro, o ferro-caldo, que consiste numa haste, em cuja extremidade há uma figura, e, na outra, um pedaço de madeira ou sabugo de milho, com a função de proteger a mão de quem manuseia o escaldante metal.
         Dessa forma, a ponta do ferro que contem a insígnia é posta entre brasas incandescentes, até que adquira a mesma temperatura destas. Então, os vaqueiros, depois de dominarem o quadrúpede, deitando-o sobre o solo e amarrando suas patas, aduzem firmemente a causticante marca em ambos os lados.
         Esse processo, chamado de “ferra”,[3] no Ceará, e em grande parte do Nordeste, é feito durante o mês de julho, quando as chuvas cessam e a pastagem encontra-se mais ressequida, reduzindo a incidência das bicheiras, que nada mais são do que larvas de moscas (berne), responsáveis pela formação de úlceras nos tecidos dos animais.
         Depois de identificado o animal, a posse do dono passa a ter natureza erga omnes, oponível contra todos os homens, pois, antes de ferrado o semovente, não há como provar-se a propriedade sobre o dito animal, o que, no passado, resultava em perda para Igreja dos quadrúpedes bravios, que fossem encontrados nos campos sem qualquer identificação do proprietário.[4] Estes bichos eram chamados de “gado do vento”.[5]
         Os Carmelitas diziam que os gados bravios, sem marcas e sinais, pertenciam a Nossa Senhora. Entretanto, foram esses religiosos contraditados pelo Rei de Portugal, em 1697, declarando que tais gados eram de propriedade da Fazenda Real.[6] 
         Na época em que o roubo e o furto eram mais graves que os crimes contra a vida, a obrigação de restituir animais alheios era quase sagrada. Sendo assim, caso uma rês tresmalhada (fugida) fosse esbarrar em terras de outro fazendeiro, este, depois de identificar a marca, tinha o dever de comunicar ao verdadeiro dono, tão logo, restituindo-lhe o bem. Para isso, o fazendeiro tinha a obrigação de “dar campo”, ou melhor, auxílio ao vaqueiro que vinha buscar a rês fujona, cedendo os vaqueiros da própria fazenda para proceder-se à pega (captura).
         Caso contrário, não conhecendo o ferro da rês, riscava-se o desconhecido ferro nas portas das casas ou nos troncos das árvores,[7] na intenção de publicar-se o paradeiro do animal evadido. Curiosamente, disso originou-se o nome da cidade de Paus dos Ferros, no RN, pois, nesse lugar, havia um pé de oiticica onde os vaqueiros gravavam em seu caule as marcas dos gados desconhecidos e dispersos.[8] 
         Existia uma rígida regra para proceder-se ao ato da ferra, em virtude de que não podia a marca constar em toda e qualquer parte do corpo do animal, mas nos exatos locais ditados pelo costume e pela lei.
         A intenção precípua era identificar os animais, distinguido seu dono e o local de sua origem. Nesse sentido criara-se uma ordem para dispor o ferro no epitélio dos bichos. Primeiramente, surgira o “ferro da ribeira”, na fase da colonização, quando os desbravadores se guiavam pelo curso dos rios. Posteriormente, surgiu o “ferro da freguesia”, ao passo em que as missões indígenas e as Igrejas iam sendo construídas pelos sertões.[9]
         O ferro da ribeira era posto do lado esquerdo do animal, na parte traseira, na porção inferior da coxa,[10] chamada pelos sertanejos de “anca”. Com a criação da freguesia, e o seu respectivo ferro (a letra do nome do santo padroeiro), o ferro da ribeira tendeu a cair em desuso, mas o lugar para se colocar a insígnia continuou sendo o mesmo (a anca esquerda).
         Hoje, com a evolução da divisão administrativa, existe o “ferro do município”, mas, no Ceará, persiste a terminologia “ferro da freguesia”, à exceção do Cariri/CE, onde ainda se fala em “ferro da ribeira”,[11] e Sobral, onde é chamado de “carimbo”.[12]
         O ferro do dono ou da fazenda é insculpido na coxa direita, também na porção inferior, pois os indivíduos que se sucedem na posse do gado, vão ferrando acima da marca anterior,[13] dizendo-se, na linguagem sertaneja, que a derradeira é a que “regula”, quer dizer, que tem validade. Esse ato de ferrar mais de uma vez, ascendentemente, é chamado de “contraferra”.[14]
         Os filhos do fazendeiro, em regra, herdam a mesma marca do pai, porém, costumam fazer certas modificações, acrescentando elementos ao desenho original, chamados de “diferenças”.[15] Estas, são formadas por vinte e um caracteres, dentre os quais, existe a balança, a meia lua, o puxete, a flor (uma espécie de r minúsculo)[16], o martelo etc.
         Outras vezes, com mais frequência entre as filhas, a marca do pai é utilizada sem nenhuma modificação, mas, é seguida, logo abaixo, de um número, conforme a ordem de nascimento de cada uma das filhas.
         O costume, a lei e a necessidade obrigaram os sertanejos a individuarem seus bens semoventes, com o fim de manterem-se nas suas posses. Logo, disso surgiu uma “rude arte” na criação dos símbolos identificadores, que, apesar de seu conteúdo popular, apresentam certa erudição.
         Entre os Feitosa do sertão dos Inhamuns, é de uso generalizado a figura da estrela, com cinco ou seis pontas. Não se conhece a razão disso, nem se os primeiros membros dessa família também faziam uso desse símbolo. Mas, é indiscutível que essa prática transcende os séculos, e está disseminada entre todos os membros desse clã.
         Muitos símbolos possuem uma forma pronta e acabada, que é impressa no couro dos gados. Porém, alguns desenhos exigem ferros diferenciados para se alcançar o resultado desejado, como ocorre com a sobredita estrela, que é gravada com o “giz” (um ferro, cuja extremidade cáustica é em forma de espátula ou buril). Com essa ferramenta, fazem-se os mais diversos desenhos.
         Outras marcas comuns entre os Feitosa são o “P”, para os habitantes do Rio de Jucá, e o “R” para os moradores do Rio do Puiú. Hoje, a razão para esse uso é praticamente desconhecida, contudo, a explicação é bem óbvia.
         Algumas marcas estavam ligadas diretamente a uma ribeira (terrenos marginais de um Rio) ou uma freguesia (divisão administrativa da Igreja), que poderia compreender mais de uma ribeira.
        
Usado no Rio do Puiú.
         A freguesia da antiga povoação de Arneiroz possui como santo padroeiro Nossa Senhora da “Paz”, por isso todos os gados pertencentes às fazendas circunscritas por essa freguesia deveriam possuir a marca com a letra “P” (Paz). Já a ribeira do Jucá estava ligada à freguesia de Tauá, cujo padroeiro é Nossa Senhora do “Rosário”, daí usar-se o “R” (Rosário) como sinal oficial da dita ribeira.
        
Usado no Rio de Jucá.
         Entretanto, essas marcas não eram privativas ou exclusivas dos Feitosa, apesar de serem largamente utilizadas pelos mesmos, devido ao número de propriedades pertencentes aos membros dessa grei ao longo das margens desses rios.
          Atualmente, há uma tendência em proceder-se à ferra com a utilização de simples letras do alfabeto vernáculo, em conformidade com os nomes dos proprietários. No entanto, ainda persistem casos em que, na família Feitosa, os símbolos gravados são herdados de tempos imemoráveis, seguindo as        mesmas regras dos séculos passados.
         Seria extenuante apresentar todas as marcas de ferro usadas pelos membros da família Feitosa. Desta maneira, exemplificativamente, será demonstrada a regra do processo de ferra ainda existente no seio dessa família. Na Fazenda Saco Virgem (Parambu/CE), pertencente ao Tenente Emiliano Ferreira Ferro (que viveu no século XIX), é comum assinalar os gados com um “3”, além da estrela.
        
O "3" usado pelo Tenente Emiliano Ferreira Ferro.
        Já o filho do Tentente, Epaminondas Ferreira/Feitosa Ferro, que fora dono da Fazenda Cacimba Velha (falecido no início do século XX), usava, além do “3” e da estrela, o número “7”, invertido e de cabeça para baixo.
        
Marca usada por Epaminondas Ferreira Ferro.
           Seguindo a tradição, todos os filhos de Epaminondas, inclusive as mulheres, marcavam seus animais com a estrela, o número “3” e o número “7”, porém, este derradeiro caractere é diferenciado para cada um dos filhos de Epaminondas. Neste caso, as mulheres não empregam exatamente a marca do pai e o número da ordem de seus nascimentos, mas fazem uso da mesma sistemática seguida pelos filhos do sexo masculino, que utilizam a marca paterna aplicando-lhe as diferenças.
         O filho primogênito de Epaminondas, Emiliano Ferreira Ferro (Milu), herdou a marca paterna sem nenhuma modificação, talvez isso esteja ligado ao velho instituto do morgadio, em que o filho mais velho herdava a totalidade dos bens do patriarca.
        
Marca usada por Emiliano, filho de Epaminondas.
           Outro filho de Epaminondas, Aderson Feitosa Ferro, utiliza a marca do pai com as respectivas modificações, empregando à figura um martelo na parte meridional. Assim, grava em seus animais, do lado direito, nas ancas, sua marca (composta pelo “7” invertido e de cabeça para baixo, e um “F”). No lado esquerdo, na anca, apõe a estrela; e na “pá” (porção anterior do animal) um “3”.
        
Marca usada por Aderson, filho de Epaminondas.
           Nos asininos (jumentos), Aderson usava o sete com um martelo na extremidade. O local para imprimir esse ferro diferia dos outros, porque, nos asnos, a marca era posta no chanfro (um pouco acima das ventas). Isso facilitava a visualização e a identificação do sinal enquanto esses bichos pastavam soltos nas matas.
        
Marca que Aderson reservava aos jumentos.
          Convém lembrar que muitos integrantes da família Feitosa não costumam fazer uso do ferro da ribeira (ou ferro da freguesia, ou ferro do município), mas, em seu lugar, empregam a estrela. Esta, particularmente, traz duas informações, a primeira é identificadora da família (Feitosa), a segunda indica o lugar, os Inhamuns. Isso fugia a regra, inclusive contrariando as leis que regulavam o tema.
         A tendência moderna é substituir esse antigo costume, da ferra, por técnicas menos trabalhosas, com marcas que se restringem às letras iniciais dos proprietários, substituindo-se o ferro em brasa por substâncias cáusticas, industrializadas. Outras vezes, fazendo-se uso de brincos auriculares ou tatuagens na parte interna das coxas dos gados.
         Além disso, as cercas delimitaram os espaços, extinguindo os compáscuos (pastagens em que os gados de diferentes donos ruminavam) e limitando os deslocamentos dos animais, evitando a confusão sobre a propriedade dos gados tresmalhados.
         Hoje, os vaqueiros, comodamente, campeiam montados em motocicletas, sem sopitar-lhes qualquer dúvida sobre os animais de seu domínio. Essa modernidade ameaça extinguir o secular costume da ferra, um instituto aparentemente supérfluo, mas que compõem elementos essenciais na caracterização da propriedade dos tempos passados. Por isso sendo necessário registrar esse processo no âmago da família Feitosa, antes que o tempo o devore e o esquecimento o apague. 
                 
                  

  
BIBLIOGRAFIA:

Barroso, Gustavo, Terra de Sol, 8ª Ed., Rio - São Paulo - Fortaleza, ABC Editora, 2006.

Couto, Mons. Francisco de Assis, Monografias: Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus, Fortaleza - CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999.

Faria, Oswaldo Lamartine de, Encouramento e Arreios do Vaqueiro no Seridó, Natal - RN, Fundação José Augusto, 1969.

Koster, Henry, Viagens ao Nordeste do Brasil, 12ª Ed., Rio - São Paulo - Fortaleza, ABC Editora, 2003.

Maia, Virgílio, Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, Cotia - São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.

DOCUMENTOS:

Arquivo Histórico Ultramarino, Brasil - Ceará, 20 de junho de 1744 e 17 de fevereiro de 1746.

                
           
                           
                
           
             




[1] Faria, Oswaldo Lamartine de, Encouramento e Arreios do Vaqueiro no Seridó, Natal - RN, Fundação José Augusto, 1969, p. 12.
[2] Maia, Virgílio, Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, Cotia - São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 07.
[3] No Rio Grande do Sul chama-se “marcação” e não “ferra” (Ver: Maia, op. cit., p. 74)
[4] As leis da Província do Ceará também tratavam do assunto, chamando ao gado de três anos, sem marca, de “barbatão” (Ver: Maia, op. cit., p. 27).
[5] Arquivo Histórico Ultramarino, Brasil - Ceará, 20 de junho de 1744 e 17 de fevereiro de 1746.
[6] Couto, Mons. Francisco de Assis, Monografias: Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus, Fortaleza - CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999, p. 41 e 93.
[7] Barroso, op. cit., p. 140.
[8] Esse episódio fora tratado por Luís Câmara Cascudo numa nota de rodapé (in Koster, Henry, Viagens ao Nordeste do Brasil, Volume I, 12ª Ed., Rio - São Paulo - Fortaleza, ABC Editora, 2003, p. 223).
[9] Maia, op. cit., p. 71.
[10] Faria, op. cit., p. 17.
[11] Maia, op. cit., p. 71.
[12] Ibidem, op. cit., p. 72.
[13] Barroso, Gustavo, Terra de Sol, 8ª Ed., Rio - São Paulo - Fortaleza, ABC Editora, 2006, p. 139.
[14] Maia, op. cit., p. 28.
[15] Ibidem, op. cit., p. 35.
[16] Barroso, op. cit., p. 140.

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