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quinta-feira, 5 de abril de 2012

DOCUMENTOS INÉDITOS: (I) CONFIRMAÇÃO DE CARTA PATENTE DO CORONEL FRANCISCO ALVES FEITOSA


DOCUMENTOS INÉDITOS: (I) CONFIRMAÇÃO DE CARTA PATENTE DO CORONEL FRANCISCO ALVES FEITOSA
                                                                                                                              
  
                                                                         Heitor Feitosa Macêdo

               
         A história quase sempre é recontada a partir do surgimento de novos documentos, antes imersos em poeiras e esquecimento. E para contribuir com esse processo, o Projeto Barão do Rio Branco (Projeto Resgate) promete pôr fim a uma parte desconhecida e distorcida da história do Brasil, concorrendo para isso a elucidação da Carta Patente conferida ao sesmeiro e colonizador pernambucano Francisco Alves Feitosa.
         Esse projeto é fruto da empreitada do Ministério da Educação, da iniciativa do Embaixador Vladimir Murtinho e da Dr.ª Esther Caldas Bertolette, consistindo no resgate das imagens de documentos manuscritos referentes ao Brasil colonial, espalhados  pelo exterior.
         O conteúdo de tais manuscritos vai desde simples correspondências até cartas régias, além de pareceres do Conselho Ultramarino e do Conselho da Fazenda. A identificação e a triagem dessa documentação foram realizadas por Professores Doutores de diversas Universidades, resultando em milhares de imagens em CD-ROMS e microfilmes.[1]  
         O presente documento, confirmação de carta patente, faz parte da coletânea compulsada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, referente à Capitania de Pernambuco, material bastante extenso, com 33 mil documentos, por conta de essa Capitania ter mantido sob sua jurisdição outras como a de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
         A ciência histórica vive às voltas com sua própria dinâmica, volvendo-se no tempo para reescrever afirmativas dantes tão categóricas, mudando o curso dos fatos segundo o paulatino aparecimento de outras fontes primárias. Contudo, vez por outra um cartapácio se revela sacudindo o pó do esquecimento, e trazendo uma visão mais exata dos fatos, carreando uma nova verdade histórica. E isso é o que tem frequentemente ocorrido com a redescoberta desses preciosos documentos.
         Nesse momento, a história, principalmente a de cunho regional, goza de novos e esclarecedores auspícios, e dentre os milhares documentos relativos à Capitania de Pernambuco, um vem corrigir a falsa assertiva adotada por historiadores até o presente instante.
         Trata-se da patente conferida ao pernambucano Francisco Alves Feitosa, que migrou para a Capitania do Ceará, juntamente com o irmão (Lourenço Alves Feitosa), em meados de 1700, com fulcro em peticionar datas de sesmarias que estavam sendo doadas a torto e a direito.
         Quando da sua chegada, escolhera a ribeira do Icó como domicílio. Neste mesmo lugar, residiam as principais famílias do Cariri, lideradas em sua maioria por empreendedores do ciclo do gado, que buscavam terras nas imensidões agrestes para o estabelecimento de seus currais.
         Francisco havia desposado uma viúva pertencente a um importante grupo familiar dominante e residente nessa mesma localidade, Isabel de Montes Silva, com a qual trespassava o bucólico cotidiano.
            Entretanto, o irmão de Francisco visava à tornar-se mais rico e poderoso, não lhe bastando as léguas de terras que havia recebido por doação sesmarial nas Capitanias de Pernambuco e Ceará. Lourenço ambicionava todas as terras que os olhos podiam alcançar. Fato que causou desagrado aos irmãos da esposa de Francisco, culminando em um enfrentamento armado.

O  Coronel  Francisco  Alves  Feitosa,  justiça  se  lhe  faça,  soube  compreender  a aflitiva  situação  de  sua  consorte,  não  tomando  parte  nos  três  primeiros  atos de hostilidades  dos  seus  parentes,  pois  que  as  tomadas  das  terras do Riacho Trussu-Barra  e  a  famosa  lagoa do Iguatu foram atos, que o comissário geral Lourenço Alves Feitosa  encabeçou,  sozinho.  No terceiro ato, porém,  entraram,  em  cena,  os          dois  Lourenços  pai  e  filho.  Bloquearam, em Icó  o  coronel  Montes,  situando-se      ambos nas testadas de suas terras. Tornaram-se,  destarte,  vizinhos  de  terras.  Recrudescendo  a  questão,  o coronel Francisco  Alves  Feitosa   vira-se   na  emergência de  solidarizar-se  com  o  seu irmão  e  parentes,  nos  últimos  atos.[2]   
               
        Esse episódio configurou o maior conflito agrário da história do Ceará, tomando proporções tão consideráveis que, a exigência pelo fim deste entrevero, necessitou bater às portas da Coroa Portuguesa, a qual aconselhou às autoridades locais que procedessem drasticamente em relação aos líderes desse levante. Para tanto, o governo português também encarregou um funcionário do seu alto escalão para apurar os fatos e punir os culpados.
         Tão logo se abriu a sindicância, a respeito da Guerra entre Montes e Feitosas, os culpados foram indigitados. Assim, Francisco, os dois Lourenços e alguns outros membros de sua parcialidade foram responsabilizados pelo embate.
         Entretanto, ainda no auge da contenda armada, entre os anos de 1724 e 1725, o governador da Capitania do Ceará já havia aplicado penalidades a alguns dos líderes da sublevação, suspendendo-lhes as respectivas patentes,[3] pois enorme era o poder e influência dado a estes indivíduos em tais cargos, providos e escudados no seio do próprio Estado.
         Frise-se que Lourenço Alves Feitosa, ao chegar de Pernambuco, já ostentava o cargo militar sob o título de Alferes.[4] Contudo haveria de angariar patamar mais elevado, chegando a Comissário Geral.[5] Quanto a Francisco, este só seria tratado pelo nome de Coronel, em documentos oficiais, a partir de 1722.[6] Apesar de essa nomeação, para o referido cargo, ter ocorrido em data anterior.
         O exato momento dessa nomeação, para o posto de Coronel, é dado pelo pai da história cearense, Antônio Bezerra, o qual assegurou que: "O Capitão Salvador Alves, além de tudo nomeou Francisco Alves Feitosa, coronel de Cavalaria das Ribeiras de Quixelou e Inhamus, por carta patente de 15 de junho de 1719"[7]. Partindo de tal afirmativa, feita pelo douto historiador cearense, seria vã ousadia tentar contestá-lo em posição tão categórica. Assim, doravante, todos os historiógrafos comungaram invariavelmente da mesma opinião, apenas repetindo-a.
        Denotaria exacerbada pretensão negar as premissas promanadas por Antônio Bezerra, porque seus escritos quase sempre se respaldam em fontes primárias, ou seja, para ele os documentos são os mais seguros meios de conhecer a verdade. Dessa forma, seguindo preceitos do positivismo, o grande escritor despreza as demais fontes dessa ciência, desacreditando-as com as seguintes palavras: "Onde a crônica se cala, diz Garret, e a tradição não fala ou fala falsamente, digo eu, antes quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta...do que uma só linha de invenção do croniqueiro".[8]
         Enristando esses argumentos, Antônio Bezerra atribui completo descrédito aos cronistas da história cearense. Fato que influenciou e ainda influencia muitos dos entusiastas da história do Ceará, que tendem a considerar o trabalho desses cronistas uma simples obra folclórica, ou fruto de pura invencionice.
         No entanto, João Brígido fez por bem rebater esse posicionamento metrificado sobre os fatos, sustentando renhida luta na seara intelectual, e acerbamente definindo o perfil de seu principal opositor na seguinte frase: "Todo Bezerra é infalibilista e admite o absoluto (...)S.Sª - como escritor, enleia, como patriota, peca errando o alvo; como historiógrafo, tem vesga alma, a mente a coxear, o estudo falho, produzindo bolhas só, algumas vezes fumaça; luz, absolutamente nunca".[9] Além disso, João Brígido parece não ter ganhado a simpatia de outros ícones da intelectualidade herodotiana.[10] 
         Esse embate ainda hoje perdura por meio dos escritos legados ao presente momento, onde muitas questões continuam permeadas de dúvidas, enquanto outras já repousam em pacífica aceitação. Contudo, o tempo é o juiz ideal para dirimir conflitos dessa espécie, dando oportunidade para o surgimento de novas evidências, as quais poderão trazer a lume acontecimentos ofuscados, ou mesmo redirecionar o que se mostra pronto e acabado.
         Logo, o aparecimento do documento referente à confirmação da carta patente do Coronel Francisco Alves Feitosa desdiz, em parte, Antônio Bezerra, ao revelar que o posto de Coronel não era de Cavalaria, mas de Infantaria, conforme se extrai da seguinte transcrição[11]:

Diz Francisco Alves Feitosa que o governador da Capitania de Pernambuco o   proveu  no  posto  de  Coronel   de  Infantaria  de  Ordenança  da Ribeira dos Inhamuns  Distrito da Capitania do Ceará Grande, e porque  para  melhor   continuar  o  Real serviço de  Vossa Majestade  necessita  de  sua patente confirmada.
Para que Vossa Majestade lhe faça mercê mandar confirmar da sua patente na forma do estilo.
Duarte Sodré Pereira Tibão donatário da Vila de Águas Belas do Concelho de Sua Majestade que Deus guarde Governador e Capitão Geral de Pernambuco, e mais Capitanias anexas [etc]. Faço saber aos que esta carta patente virem que por parte de Francisco Alves Feitosa se me representou estar exercendo o posto de Coronel de Regimento de Infantaria de Ordenança da Ribeira dos Inhamuns da Capitania do Ceará por nomeação do Capitão-mor que foi dela João Batista Furtado pedindo-me lhe mandasse passar patente de confirmação do dito posto em que foi provido por baixa que se deu dele a Matheus Monis Barreto, que o servia, por haver faltado a atos demonstrados, e visto seu requerimento e me constar ser um dos homens nobres,  afazendado e de bom procedimento, como pelo bem que tem servido a Sua Majestade em as mesmas Ordenanças daquela Ribeira com os postos imediatos, tendo-se havido com inteira satisfação na execução de tudo o que de que fora encarregado com muito zelo do Real serviço e esperando dele que daqui em diante se haverá da mesma maneira em conduzir a confiança que faço da sua pessoa. Ei por bem de confirmar, e prover em o referido posto de Coronel do Regimento da Infantaria de Ordenança da Ribeira dos Inhamuns que vagou. Como fica dito para que o seja visto e exerça e goze de todas as honras, graças, franquezas, privilégios e liberdades que em razão do dito posto lhe tocarem. Pelo que ordeno ao Capitão-Mor daquela Capitania o deixo continuar a exercer debaixo da mesma posse e juramento que se lhe deu quando nele entrou a servir, e os oficiais maiores e menores, e soldados do dito regimento lhe obedeçam e cumpram suas ordens de palavras e por escrito inteiramente como devem e são obrigados. E por firmeza de tudo lhe mandei passar a presente por mim assinada e selada com o sinete de minhas armas, que se registrara nos livros da secretaria deste Governo. Câmara de Olinda, e Vedoria Geral. Dada nesta praça do Recife de Pernambuco em os vinte e três dias do mês de junho. Bento Soares Pereira a fez, ano de mil setecentos e trinta e três, o secretário José Duarte Cardoso a fez escrever.
Duarte Sodré Pereira Tibão
Carta patente pela qual Vossa Senhoria houve por bem confirmar de Francisco Alves Feitosa no posto de Coronel do Regimento de Infantaria da Ribeira dos Inhamuns em que foi provido pelo Capitão-Mor da Capitania do Ceará João Batista Furtado como nela se declara.
Para Vossa Senhoria Ver.
Registrada no Livro 1º de Registros de Patentes que serve nesta Secretaria do Governo de Pernambuco a folha 230 frente e verso. 23 de junho de 1733.
José Duarte Cardozo.[12]
            
      Desta maneira, corrige-se o engano do grande historiador Antônio Bezerra, e, consequentemente, retifica-se o erro herdado pelos demais historiógrafos a respeito da sobredita patente. Agora, tem-se a certeza de que um dos principais desbravadores do Cariri e Inhamuns, Francisco Alves Feitosa, ostentava, na verdade, o posto de Coronel do Regimento da Infantaria de Ordenança dos Inhamuns.

BIBLIOGRAFIA:

Couto, Monsenhor Francisco de Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus), Fortaleza/CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999.

Bezerra, Antônio, Algumas Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Editora Fundação Waldemar Alcântara, 2009.

Brígido, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001.

Studart, Guilherme, NOTAS PARA A HISTÓRIA DO CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004.


DOCUMENTOS:

Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE Editora Universitária (UFPE), 2006.

Datas de Sesmarias, Volume IV, nº 202, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.

Datas de Sesmarias, Volume VI, nº 467, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.

Datas de Sesmarias, Volume XI, nº 39, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1926.



[1] Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora Universitária (UFPE), 2006.
[2] Couto, Monsenhor Francisco de Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus), Fortaleza/CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999, p. 81.
[3] Op cit., p. 39.
[4] Em 26 de janeiro de 1727, Lourenço já era tratado por esse axiônimo (Datas de Sesmarias, Volume IV, nº 202, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[5] Lourenço é tratado como Comissário Geral, em documentos oficiais na data de 06 de fevereiro de 1720, (Datas de Sesmarias do Ceará, Volume VI, nº 467, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[6] Em 17 de julho de 1722 (Datas de Sesmarias do Ceará, Volume XI, nº 39, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1926).
[7] Bezerra, Antônio, Algumas Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 132.
[8] Op. cit., p. 130.
[9] Brígido, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001, p.329 e 342.
[10] O Barão de Studart faz críticas severas aos escritos de João Brígido e Pedro Théberge (NOTAS PARA A HISTÓRIA DO CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004, p. 33).
[11] Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora Universitária (UFPE), 2006. Documento datado de 17 de agosto de 1735.

[12] A presente transcrição primou mais pelo aspecto didático, para isso, utilizando uma escrita mais afeita à atual língua portuguesa.

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